Verdade

Por Cláudio Mendonça em 16/03/2011

 

“Verdade e erro não são excludentes, posto que é precisamente na dimensão do erro e do equívoco que a verdade faz sua emergência”.
(Luiz Alfredo Garcia-Roza)

 

Na Grécia dos primórdios, era o aedo, o profeta-poeta, que descortinava a verdade através das palavras que possuíam um status de signo sagrado, promovendo a clareia e ocultação dos fatos e saberes na medida em que eram proclamadas. A alétheia naqueles tempos diferia-se do conceito Platônico e tinha o caráter de desvelamento, como afirma Parménides em face da impossibiliade de a mesma existir sem lethe. Em outras palavras: A verdade por desesquecimento, que é o sentido original de alétheia, pressupõe uma ação de mostrar-se, fazer presença, mas ao mesmo tempo propiciar um movimento de enigma na media em que não se funde em conceitos do senso comum, mas em paradigmas que ultrapassam o fazer viver dos mortais. Heidegger em da Essência da Verdade, apenas para contrastar, demonstrar a transformação deste conceito para a verdade que ocorre por correção, pela concordância entre a proposição e o ente. A verdade muda de patamar ao longo da história, em sua origem era fruto da memória do sábio, que integrado a outra dimensão, efetuava em sua mediunidade as revelações a que tinha acesso. A poesia declamada pelo Aedo promovia a necessária comoção que era parte da conexão entre mundo divino e mundo temporal. Perménides de Eléia, elaborava seus poemas contrapondo o caminho da verdade ao caminho da opinião demonstrando, por exemplo, que o engano traz em si tanto o verdadeiro como o falso. A opinião não garantiria verdade alguma como bem demonstra Descartes, como posso estar certo de que não me engano? A palavra é o artefato da mentira, do engano e da ocultação, relacionar-se com alguém, para usar uma expressão de Derrida, estar na palavra, significa estar em desamparo, sem garantias, na expectativa de uma verdade que nunca se apresenta como tal. E não seria fato que a psicanálise constrói sua verdade através da palavra não dita, da entrelinha, do implícito, do ato falhado, do erro e da contradição?

Nos tempos homéricos, as façanhas dignas de serem transmitidas pela tradição oral, eram de natureza militar e a glória das batalhas, o elogio dos feitos. Luiz Alfredo Garcia-Rosa em Palavra e Verdade aponta os dois tipos de glória militar da época, estamos nos referindo a algo em torno de mil anos AEC, a kydos que ocorria ao guerreiro no momento do embate e kleos, que era a decantação dos fatos através das gerações, ainda através do poeta que estava a serviço da aristocracia da época.

Ao guerreiro é preferível uma morte cantada e lembrada a uma sobrevivência no esquecimento. A verdadeira morte não é a do corpo, mas a da lembrança. Morte da palavra, morte pela ausência da palavra, esta é a ameaça maior que pairava sobre os gregos dos tempos homéricos. (Luiz Alfredo Garcia-Rosa 1990:32).

Heidegger associa o fragmento 53 de Heráclito, situado cerca de quinhentos anos depois, que afirma ser a guerra o pai e o rei de todas as coisas, ao aspecto de que a verdade do ser se associa à luta que, por conta dela, passa a se expor sendo. E toda a verdade não pressupõe uma violência inexorável pela necessidade de rechaçamento de todas as outras assertivas possíveis? Neste caso, afirma o mestre alemão, a essência da verdade se confunde com a essência do ser, a essência da verdade pertence, numa unidade, à essência do ser em geral.

A questão da verdade laica vai aparecer em meados do século VI onde o sentido comum, a ficção da existência de um pensamento da maioria dos viventes, vai trazer uma significativa mudança no pensamento. Na medida em que a palavra é dessacralizada e reduz seu status a representação do real, perdendo portanto seu caráter anterior de coisa, o poeta passa a desenvolver uma atividade de maior inserção no quotidiano da polis. Simonides é o primeiro poeta a perceber remuneração pela atividade e o conceito de doxa ganha força na sociedade. Doxa é o senso comum, a opinião majoritária, origem e afirmação do axioma e é daí que se cunharam as expressões: heterodoxo, paradoxo e ortodoxo, conforme sua relação com os chamados fatos de natureza pública e notória. A expressão doxa, então, situa-se como um verdadeiro marco na construção da palavra diálogo, eis que era usada para a definição de estratégias de combate, na fixação de conceitos entre pessoas de mesmo nível social e intelectual, generais a mais das vezes. A verdade por desvelamento passa a dar lugar à verdade por convencimento, a alethéia é substituída pelo peithô, a persuasão. É o momento em que os sofistas passam a ser não mensageiros da verdade, mas especialistas em retórica, defendendo seus pontos de vista. Protágoras de Abdera, expoente entre os sofistas, era estrangeiro como a maioria dos demais e exercia seu poder através da articulação dos diferentes saberes, na síntese agregadora das convicções, nas construções de idéiasforça eivadas de beleza discursiva, extremamente bem elaboradas, a partir dos diferentes feixes da opinião da sociedade. Ganhar o debate era o mais importante, os aspectos processuais da produção das idéias, seu contraste persuasivo estava muito acima da busca pela verdade essencial. A verdade socrática, ou melhor, a busca da verdade pelo método desenvolvido por Sócrates era diametralmente oposta em essência. A pergunta demolidora e sucessiva que induz o pensamento, que flexiona convicções, que provoca a contradição, em muito se afasta da técnica sofista e não foi por acaso que ele pagou com a vida por esta ruptura. A verdade maiêutica, parida em processo de dor e espasmo mostrava-se como o caminho para, através do estar na pergunta, demolir conceitos e verificar a tenacidade das convicções. Correndo o risco de praticar um clichê, decalco o diálogo do pensador grego com o militar.

Sócrates busca investigar o que é a coragem, o que é ser corajoso. Chega à praça pública e se encontra com um general ateniense. Então diz para si: “Aqui está; este é quem sabe o que é ser corajoso, visto que é o general, o chefe.” E se aproxima e lhe diz: “Que é a coragem? Você, que é um general do exército ateniense, tem que saber o que é a coragem,” Então o outro lhe diz: “Pois é claro! Como não vou saber eu o que é a coragem? A coragem consiste em atacar o inimigo e nunca fugir.” Sócrates coça a cabeça e lhe diz: “Essa sua resposta não é totalmente satisfatória”; e lhe faz ver que muitas vezes nas batalhas os generais ordenam ao exército retroceder para atrair o inimigo a uma determinada posição e nessa posição lhe cair em cima e destruí-lo. Então o general retifica e diz: “Bem, você tem razão.”

Ocorre que Platão ao rejeitar a poesia, parece-me esta rejeitando o papel do poeta a praticar a verdade por mero desvelamento, recebida pronta pela obra mediúnica do aedo, posteriormente situado como transmissor da historicidade pela versão da glória e mais tarde a questão relacionada à proposições retóricas organizadas em bela aparência de concatenação verbal, mas sem correlação com a verdade no sentido da constante busca pela iluminação apofântica. Platão nega, por outro lado, a via alegórica de apresentação das idéias, mas recorre a elas a todo o momento e o mito da caverna parece querer traduzir os diferentes estágios de abertura do homem em relação à verdade e a forma como a filosofia se coloca a serviço de uma determinada forma de pensar. A ruptura que se estabelece de maneira absolutamente radical é que o mundo das aparências é de difícil apreensão ao contrário do mundo das idéias que se nos apresenta como passível de compreensão e domínio, não sem o necessário esforço e tenacidade, diga-se. Francois Chatlêt pode nos ajudar a compreender melhor o que esta em jogo aqui:

Precisemos melhor as coisas, examinando a gênese da essência, tal como o filósofo a definiu. Platão da o nome de doxa às opiniões múltiplas desenvolvidas pelo bom senso democrático. Mostra que essas opiniões se referem sempre a supostos fatos que, na realidade, são em grande parte produto das paixões, dos interesses, dos desejos e das circunstâncias. Cada um vê o real como lhe convêm, e chama de “ realidade” a tudo o que corresponde às suas disposições subjetivas. (1992:37).

A filosofia passaria então a se sustentar pelo inafastável princípio da não contradição e passou a se autolegitimar em uma procura incessante e comprometida com o conhecimento. E é em Aristóteles que podemos encontrar a fundamentação da verdade tal como evidenciada pela metodologia científica e pela teoria da linguagem. A física em oposição à retórica sofista – séculos antes de Saucerre! – a ruptura da autonomia das palavras em relação às coisas e sua subordinação a uma relação de significante e significado.

A distinção que Aristóteles estabelece entre significação e proposição rompe com a relação termo a termo que em Platão ligava as palavras e as coisas sem, contudo, fazer da verdade algo que se reduza a significação. A verdade não habita o termo considerado isoladamente, mas também não habita a significação pelo simples fato desta significar. (Luiz Alfredo Garcia-Rosa 1990:88).

Parece-nos importante inserir aqui o conceito aristotélico de práxis e poiêsis não apenas pela sua evidente correlação com o objeto deste artigo, como também pela ligação com a origem do pensamento de Martin Heidegger que será exposto em diferentes momentos do texto, em especial mais adiante quando discutiremos idéias fundadoras em A Origem da Obra de Arte. Nos capítulos IV e V do livro VI da Ética a Nicômaco Aristóteles trata da arte e da ciência e separa a produção humana da atividade política. A poiêtica se refere ao fazer e se colocar em obra o que é objeto da razão. A arte é resgatada pelo pensador grego diante do quase banimento exigido por Platâo – que em A República abriu exceções à manifestações de natureza evocativa cívica e militar – como fruto do uso da razão. A arte objetiva o fazer, fazer alguma coisa e colocar no prisma da ordem e do conceito, entes que não pertencem ao universo do necessário e nem são extratos da natureza.

Duas indicações serviram para sustentar esta leitura: primeiro, a passagem logo no início da obra, onde Aristóteles nota que há entre os fins (das artes e da escolha) vários tipos de diferenças, dentre as quais esta que, para algumas, eles consistem na própria atividade enquanto para outras, o fim comporta, além da atividade, uma obra. Esta passagem pareceu fornecer a justificação da interpretação que concebe o fim da praxis como imanente, ou, em todo caso, como consistindo na atividade mesma, enquanto o da poiêsis consistiria em uma obra stricto sensu, isto é, um produto que se exterioriza em relação à atividade e subsiste quando esta termina. (Bernard Besnier 1996:134)

Tanto a praxis como a poiêsis são comportamentos dentro da dimensão inautêntica do ser ai. A primeira pode ser traduzida com a atividade política em si e, portanto autoreferenciada – a finalidade da ação esta na própria ação – e a segunda, referenciada no objeto, pressupõe uma téchne, um saber fazer um know how. É nesta gramática que o dasein vive tanto a valer-se dos utensílios, objetos à mão, dispostos nas diferentes regiões e vez por outra isola um determinado ente para uma análise de caráter científico. A estrutura autoreferencial vai se repetir na conjunção da existência autêntica, do ser para a morte em seu solipsismo. A sabedoria prática permite deliberar com vistas à produção do bem e cita como exemplo Péricles (495 – 429 AEC), estadista e militar tido como exemplo de sábio (phrônesis) governante.

Em alguns trechos Aristóteles define claramente as diferentes visões. No tocante à ciência ele discorre sobre a exigência do cumprimento de algumas características ontológicas, como o objeto ser eterno, pela sua própria necessidade em sentido absoluto, o fato de podermos aprender o objeto e ensiná-lo, e a questão do método, a forma de obtenção de determinado conhecimento na perspectiva de uma trajetória típica e não meramente acidental. A verdade científica é legitimada pelo experimento. No que se refere à matriz comportamental e sua relação com a arte o grego é taxativo:

(…) assim, a capacidade raciocinada de agir é diferente da capacidade raciocinada de produzir; e do mesmo modo não se incluem uma na outra, por que nem agir é produzir, nem produzir é agir. Visto que a arquitetura é uma arte, sendo necessariamente uma capacidade raciocinada de produzir, e não há arte alguma que não seja uma capacidade dessa espécie, nem capacidade dessa espécie que não seja uma arte, a arte é idêntica a uma capacidade de produzir envolvendo o reto raciocínio. (Aristóteles 2001:127).

A arte para Aristóteles tem sua legitimação no juízo e cita a sabedoria dos “expoentes” Phídias, o escultor, e Policleto, retratista em pedra. Importante registrar que a expressão mímesis para Aristóteles é conceito diametralmente oposto ao visto em Platão. Enquanto para este traz o significado de cópia tentada e, portanto, objeto e razão das idéias falsas, naquele a similitude tem status de verossimilhança e, portanto, de representação, o que leva à inevitável conexão com o universo do verdadeiro conforme destaca Fernando Santoro em seu capítulo sobre arte e filosofia que demonstra a importância da Poética do seguidor crítico do platonismo e afirma:

Assim, Aristóteles foi decisivo para o que hoje entendemos como arte. Muitas das clivagens, dos valores, das categorias e dos princípios das teorias estéticas modernas e contemporâneas têm origem nas especulações de Aristóteles sobre a poesia épica, sobre a música e sobre a poesia dramática. (2010:46).

Heidegger nos faz lembrar que tanto Aristóteles como Kant ou São Tomás de Aquino, que viviam em mundos tão diferentes, apesar de acreditarmos que todos leram seus antecessores, defendia a trilha necessária a aquisição da verdade: pela via da correção. A concordância entre as diferentes faculdades do juízo: como representação, entendimento e imaginação. O consenso entre o ente e nossos conceitos. A necessidade de a verdade surgir pela via das idéias, da expressão analítica, do espancamento das dúvidas pela inflexão voraz de nossas convicções, crenças e pressupostos. A linguagem parece uma ferramenta inadequada para a produção da verdade, uma vez que ela se presta ao equívoco e à ilusão, mas como expressão do pensamento é tudo o que temos além de nossa interioridade ou essência. Mas é em Nietzsche e depois no próprio Kant e em Hegel que encontraremos nosso caminho de volta para o debate correlacional entre verdade e arte.

*Cláudio Mendonça foi chefe de Gabinete Parlamentar na Assembléia Nacional Constituinte (1988); Secretário Municipal de Fazenda e Administração (Resende, 1989-92); Secretário de Estado e Presidente do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (1994); Coordenador das áreas de Fazenda e Administração do Estado do Rio de Janeiro (1999-2002); Consultor do Banco Mundial (2002); Presidente do Instituto Brasileiro de Educação e Políticas Públicas – IBEPP (2002), Presidente da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro – FAETEC (2003); Secretário de Estado de Educação do Rio de Janeiro (2004-2006); Membro do Conselho de Análise Econômicas e Sociais do Rio de Janeiro (Fecomércio RJ – 2008); Presidente da Fundação Escola de Serviço Público FESP-RJ (2007/2009); Presidente Interino da Fundação Centro de Informação e Dados do Rio de Janeiro – CIDE (2008/2009); Em outubro de 2008 foi designado Conselheiro Titular do Conselho Estratégico de Informações da Cidade, do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP; Em abril de 2009 passou a presidir a Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro – CEPERJ. Em 01 de maio de 2009 foi nomeado como membro do Conselho Consultivo Municipal da Prefeitura de Niterói. Atualmente é Subsecretário de Estado da Subsecretaria de Capacitação de Pessoal da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (SEPLAG). Autor dos Livros: “Solidariedade do Conhecimento” e “Você Pode Fazer a Reforma Educacional”.

Fonte: Debates Culturais